terça-feira, abril 22, 2008

Ritinha

Pedro e Clarice chegam à sua residência por volta das 23 horas. Atravessam o jardim, encontram a porta entreaberta, a sala esta na penumbra – a pouca luminosidade vem de um poste do jardim. Não entendem o motivo de a porta está entreaberta, já que Ritinha – a filha do casal – se preocupa muito com a segurança da casa.
“-Ritinha.” – Chama Pedro.
“-Querida, você está aí?” - interroga Clarice.
Sem respostas, vão ao quarto dela, a cama está intacta, os lençóis não dão uma dobra sequer. Clarice vai até a suíte, nenhum vestígio da sua presença. Encontra apenas um vidro de sal de banho aberto.
“-Pedro, tem um envelope na mesa do computador.” - diz Clarice.
No envelope escrito: “Aos meus queridos”.
Clarice olha preocupada para Pedro. Sua expressão revela seu pensamento: “O que será isso?”. Pedro pega o envelope, respira profundamente como se com o ar viesse a coragem; retira – com as mãos trêmulas – a carta.
“Queridos, há muito tempo queria falar algo para vocês, entretanto, não sabia como abordá-los...”.

Ritinha chega em casa decidida, não fecha a porta e nem acende a luz. Atravessa a sala de estar, entra em seu quarto e vai direto para sua suíte. Entre lágrimas prepara o banho com seu sal preferido: limão – o cheiro cítrico a deixa calma, põe o vidro sobre a pia, e começa seu ritual: entra na banheira, brinca por um instante com a espuma esverdeada tomando-a em suas mãos e soprando-a. Com o olhar perdido lembra do sorriso da mãe e do olhar reprovador do pai.
Após o banho, veste seu roupão, senta-se à beira da cama por alguns minutos, olha uma fotografia no criado-mudo: a família reunida no aniversario de 15 anos. Pensa no que acontecerá.
Vai para a mesa do computador, pega papel e caneta na gaveta, começa a escrita de uma carta.
“... não sei como explicar esse sentimento que toma conta do meu ser...”

O pai já com a voz embargada continua a leitura da carta. A mãe, com as pernas adormecidas, cai sentada na cama de Rita.
A cada palavra escrita uma lágrima derramada. Assina a carta, pega seu perfume na penteadeira e borrifa no papel.
“... resisto, mas é mais forte que eu...”

Clarice continua em silêncio, seus olhos brilham, sua respiração ofega. O que acontecera com a sua doce Ritinha? – pensa.
“... é mais fácil condenar...”
Rita sai do seu quarto, vai à cozinha, pega uma maçã na fruteira, delicia-se da doçura e da beleza do seu fruto predileto.

Pedro coloca o papel sobre a mesa do computador, balança a cabeça como se quisesse afastar seus pensamentos, puxa a cadeira, senta e continua a leitura.
“...tenho medo da reprovação de vocês...”
Saboreando a maçã – Ritinha – pega uma faca e sai em direção ao sótão. Desfila pela casa vestindo um roupão apenas e pés descalços.
“...se eu pudesse eu mudaria, sinto o desejo me consumir e a resistência mata-me aos poucos...”
Os olhares de Pedro e Clarice se cruzam.
No sótão, que servia de depósito, Ritinha afasta todos os objetos que pudesse atrapalhar seu ritual.
“...trago comigo o peso de estar presa à um corpo feminino e amar um ser igual à mim...”
Clarice chora desesperadamente, tentando abafar sua emoção com as mãos.

O palco para seu ritual está pronto. Dá a última mordida na maçã, tira o roupão, pega a faca, respira e num movimento brusco, para não te faltar a coragem, corta os pulsos.
“... amo, mas não ouso nomear este amor...”
Clarice e Pedro se abraçam.
“... alguém tem sempre de morrer para que os outros vivam, morro para a vida de vocês. Não quero que paguem o preço de ter uma filha que a normalidade não aceita.
Quero que guardem a lembrança do meu sorriso.
Cada um pode com a força que tem na doçura de ser feliz, eu não pude e nem tive força. Ritinha”.
Num gesto desesperado Clarice percorre todos os cômodos da casa na esperança de encontrá-la viva. Entra no sótão e encontra a sua Ritinha com o corpo despido, as mãos sobre o busto sujo de sangue e o olhar paralisado. Ajoelha-se, pega Rita como se fosse o bebê que viu crescer e a toma em seus braços. Suas lágrimas lavam a face da filha.
Vendo que o fio da vida se rompera fecha o espelho da alma.

Um comentário:

ಌ Debbynha ಌ disse...

"Cada um pode com a força que tem na doçura de ser feliz"

Essa frase é perfeita e me faz pensar...

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